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Atrasos na Ligação de Usinas Solares à Luz da Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL

Resumo

A ligação de usinas solares de geração distribuída às redes de distribuição das concessionárias públicas está sujeita a prazos definidos pela Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL, que variam conforme o nível de tensão e a dimensão das obras necessárias, podendo alcançar o prazo máximo de 365 dias. O descumprimento injustificado desses prazos, salvo nas hipóteses taxativamente previstas na referida resolução, configura violação de dever legal e enseja responsabilidade objetiva das distribuidoras, com obrigação de compensar financeiramente os consumidores prejudicados. A legislação assegura ao empreendedor meios de reagir, seja pela via administrativa — com reclamações formais à distribuidora e à ANEEL —, seja pela via judicial, com ações para compelir a conclusão das obras e indenizar os danos decorrentes dos atrasos nas ligações das usinas solares. A efetividade desse arcabouço regulatório e a consolidação de jurisprudência favorável são essenciais para garantir previsibilidade, segurança jurídica e incentivo ao avanço da geração distribuída no país.

  1. Introdução

O setor de energia elétrica brasileiro, notadamente no contexto da Geração Distribuída (GD), tem experimentado avanços significativos nos últimos anos, impulsionados pela crescente demanda por fontes limpas e pelo protagonismo da energia solar fotovoltaica. A par desses avanços, verifica-se, contudo, uma frequente tensão entre as empresas desenvolvedoras de projetos de geração distribuída e as concessionárias ou permissionárias de distribuição de energia elétrica, especialmente quanto à observância dos prazos legais para a efetivação das ligações das usinas à rede de distribuição daquelas. A recorrência de atrasos nesse processo, ainda que envolva diversas justificativas técnicas ou administrativas pelas distribuidoras, clamam por uma análise detida à luz do microssistema regulatório aplicável, em especial da Lei nº 14.300/2022, da Resolução Normativa nº 1000/2021 da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), e da jurisprudência pátria mais recente.

2. Da Regulação da Prestação do Serviço de Distribuição de Energia Elétrica e da Responsabilidade Objetiva da Distribuidora

A Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL consolidou direitos e deveres das partes integrantes do setor elétrico, estabelecendo as regras de prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica, disciplinando de maneira minuciosa os aspectos que tangenciam a solicitação, o processamento e a efetivação de pedidos de conexão de micro e minigeradores ao sistema de distribuição. No tocante à Geração Distribuída, e de forma especial às usinas solares, o texto normativo disciplina a tramitação interna dos processos de acesso, define as etapas do procedimento, os documentos exigíveis e, fundamentalmente, delineia prazos concretos para resposta e execução de obras de conexão à rede de distribuição por parte das concessionárias.

Em relação aos pareceres de acesso, documentos técnicos emitidos pelas distribuidoras de energia elétrica que atestam a viabilidade de conexão de um sistema de geração distribuída à rede de energia elétrica, estes devem prever os prazos para a conexão ao sistema de distribuição, os quais estão previstos no art. 64 da Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL:

Art. 64. A distribuidora deve elaborar e fornecer gratuitamente ao consumidor e demais usuários o orçamento de conexão, com as condições, custos e prazos para a conexão ao sistema de distribuição, nos seguintes prazos, contados a partir da solicitação:

I – 15 dias: para conexão de unidades consumidoras com microgeração distribuída ou sem geração, em tensão menor do que 69kV, em que não haja necessidade de realização de obras no sistema de distribuição ou de transmissão, apenas, quando necessário, a instalação do ramal de conexão;

II – 30 dias: para conexão de unidades consumidoras com microgeração distribuída ou sem geração, em tensão menor do que 69kV, em que haja necessidade de realização de obras no sistema de distribuição ou de transmissão; e

III – 45 dias: para as demais conexões.

Ocorre, contudo, que, em função da exploração difusa de parques solares, comumente localizados em áreas de limitada infraestrutura, em muitos casos é necessária a realização de obras no sistema de distribuição, de forma a possibilitar a conexão dos projetos de Geração Distribuída à rede da distribuidora. Nesse cenário, faz-se mister observar as disposições do art. 88 da Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL, que prevê os prazos para conclusão das referidas obras de conexão:

Art. 88. A distribuidora deve concluir as obras de conexão nos seguintes prazos:

I – até 60 dias: no caso de obras na rede de distribuição aérea em tensão menor que 2,3 kV, incluindo a instalação ou substituição de posto de transformação em poste novo ou existente;

II – até 120 dias: no caso de obras na rede de distribuição aérea de tensão maior ou igual a 2,3 kV e menor que 69 kV, com dimensão de até um quilômetro, incluindo nesta distância a complementação de fases na rede existente e, se for o caso, as obras do inciso I; ou

III – até 365 dias: no caso de obras no sistema de distribuição em tensão menor que 69kV, não contempladas nos incisos I e II.

Portanto, observa-se que o prazo aplicável a cada caso vai variar em razão de dois principais critérios: o nível de tensão do acesso solicitado e a dimensão da obra na rede de distribuição, podendo atingir o prazo máximo de 365 dias. A consolidação desses prazos — clara e obrigatória — visa conferir previsibilidade e segurança jurídica para os investidores, evitando, assim, a arbitrária postergação dos cronogramas de acesso por parte das distribuidoras.

Cumpre destacar que os prazos trazidos no referido art. 88 da Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL devem ser contados a partir da: i) aprovação do orçamento de conexão, nos casos que em que não exista necessidade de devolução dos contratos assinados; ou ii) devolução dos contratos assinados pelo consumidor e demais usuários e, caso aplicável, pagamento dos custos constantes do orçamento de conexão.

Esses prazos são legais, vinculantes, e seu descumprimento só é admitido diante de hipóteses excepcionais, previstas no art. 89 da Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL, que prevê, entre outras hipóteses, a não apresentação de informações ou realização de obras, de responsabilidade do consumidor, desde que tais informações e obras inviabilizem a execução das obras pela distribuidora, a não obtenção de licença, autorização ou aprovação da autoridade competente pela distribuidora, bem como da servidão necessária e em casos fortuitos ou de força maior, nos termos da legislação civil.

Contudo, com o acelerado crescimento do setor de geração de energia elétrica, marcado pelo avanço da Geração Distribuída, vem-se observando com reccorrência o descumprimento dos prazos previstos na Resolução Normativa nº 1000/2021 por parte das distribuidoras/concessionárias, motivando a promoção de medidas legais para que seja determinada a conclusão das obras de conexão, bem como a compensação financeira pelos prejuízos suportados pelos consumidores em razão dos atrasos nas obras.

3. Responsabilidade Objetiva da Distribuidora e Compensação Financeira: Fundamento e Extensão

No seio do direito administrativo brasileiro, especialmente no âmbito dos serviços públicos, a responsabilidade civil das concessionárias de energia elétrica é indubitavelmente objetiva, segundo o art. 37, §6º, da Constituição Federal e entendimento sedimentado no STF. A distribuidora, enquanto delegatária de serviço público essencial, deve responder independentemente de culpa pelos danos decorrentes da má prestação do serviço, inclusive no tocante à inobservância de prazos regulatórios para conexão de usinas de GD.

Ratifica-se, assim, que inexiste espaço para a invocação de motivos genéricos para justificar atrasos, devendo a distribuidora, salvo hipóteses excepcionais taxativamente previstas e demonstradas, garantir a tempestividade do acesso sob pena de violação direta de seu dever público. Tal entendimento emana, inclusive, do próprio regime regulatório, que prevê consequências administrativas e civis para o caso de descumprimento.

Em relação às hipóteses excepcionais que permitem o não cumprimento estrito dos prazos previstos no art. 88 da Resolução Normativa nº 1000/2021, estas estão previstas no art. 89 da mesma resolução:

Art. 89. Os prazos estabelecidos ou pactuados para início e conclusão das obras a cargo da distribuidora devem ser suspensos nas seguintes situações:

I – o consumidor e demais usuários não apresentarem as informações ou não tiverem executado as obras, de sua responsabilidade, desde que tais informações e obras inviabilizem a execução das obras pela distribuidora;

II – a distribuidora não tiver obtido a licença, autorização ou aprovação de autoridade competente, depois de cumpridas as exigências legais, conforme art. 87;

III – a distribuidora não tiver obtido a servidão de passagem ou via de acesso necessária à execução dos trabalhos;

IV – em caso de central geradora:

a) que não está dispensada de concessão, autorização ou permissão do poder concedente: enquanto não for apresentado o ato de outorga e parecer do ONS contendo a modalidade de operação da usina, conforme Procedimentos de Rede;

b) dispensada de concessão, autorização ou permissão do poder concedente: enquanto não for apresentado o certificado de registro ou documento equivalente emitido pela ANEEL; e

c) em processo de alteração das características da conexão dispostas no ato de outorga: enquanto não for apresentada a alteração realizada pela ANEEL;

V – em casos fortuitos ou de força maior.

Destaca-se que as hipóteses de isenção não eximem a distribuidora do encargo de comprovar que adotou todas as providências administrativas de sua responsabilidade, bem como de comunicar previamente ao consumidor e demais usuários sobre os motivos de suspensão dos prazos. Ainda, tem-se que o período suspenso será contabilizado como atraso para fins de compensação no caso de reclamação procedente do consumidor ou dos demais usuários sobre a suspensão dos prazos.

O descumprimento dos prazos para ligação das usinas de GD tem relevância ímpar ao setor, gerando prejuízos diretos — em especial pela impossibilidade de início da operação e da geração de receita —, e repercute na credibilidade do ambiente regulatório. Visando evitar a perpetração dos atrasos e descumprimento de prazos, a Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL prevê, sem seu artigo 440, a compensação ao consumidor e demais usuários de creditamento, a ser realizado na própria fatura de energia elétrica, em regra, em até dois ciclos de faturamento subsequentes ao mês em que se concluir a contagem do prazo descumprido.

Outrossim, é possível ao consumidor o ingresso de ação judicial visando compelir a distribuidora ao cumprimento dos prazos regulamentares. A demanda pode abarcar pedido de tutela de urgência para a imediata ligação da usina, caso presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora — circunstância comumente reconhecida, dada a natureza do serviço e a previsibilidade dos prejuízos, bem como pedido de compensação financeira, calculada a partir dos danos causados em razão da impossibilidade de injeção de energia ocasionada pelo atraso nas obras de conexão.

A jurisprudência, conquanto incipiente, já tem conferido guarida a pedidos dessa natureza. Tribunais de Justiça estaduais vêm reconhecendo a ilegalidade dos atrasos imotivados e determinando a conexão compulsória, sob pena de multa diária.

4. Reclamações Administrativas à Distribuidora e à ANEEL

Para além da compensação financeira, a Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL impõe à distribuidora o dever de manter canais efetivos de atendimento, por meio dos quais o empreendedor pode protocolar reclamação formal sobre o atraso, exigindo providências e registro da manifestação. Na hipótese de omissão ou de persistência do atraso, prevalece o direito de oficiar a ANEEL, que pode instaurar procedimento fiscalizatório, aplicar penalidades administrativas e, até mesmo, determinar a adoção de medidas corretivas à distribuidora.

5. Considerações Finais

À luz da Resolução nº 1000/2021 da ANEEL, os atrasos injustificados perpetrados pelas distribuidoras de energia elétrica nas obras de ligação de usinas de geração distribuída — notadamente usinas solares — configuram violação objetiva de dever legal, ensejando tanto medidas corretivas administrativas quanto responsabilização civil. O arcabouço normativo permite atuação proativa do empreendedor de GD, seja pela via administrativa (reclamação à própria distribuidora e à ANEEL) seja pela via judicial (obrigações de fazer e pedidos de indenização).

A consolidação de jurisprudência favorável ao consumidor-gerador tende a estimular maior diligência das distribuidoras, enquanto as sanções administrativas e financeiras fixadas no regime regulatório conferem maior efetividade à proteção do investidor. Imprescindível, assim, o acompanhamento constante do tema, bem como a sistematização das decisões judiciais e administrativas, a fim de consolidar a previsibilidade e a segurança jurídica indispensáveis ao avanço da Geração Distribuída no Brasil.

Por: Eduardo Saraiva