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ARTIGO: O impacto do COVID-19 nas relações contratuais

Por Thaís Praxar

Surgiu, no final do ano de 2019, uma nova variação do coronavírus na cidade de Wuhan, na China. Esse novo vírus, da mesma família do SARS-Cov e do MERS-Co, foi denominado pela Organização Mundial de Saúde como COVID-19 e rapidamente impactou a realidade de todo o globo.

De fácil transmissão, o novo coronavírus celeremente se disseminou por todo o planeta, de modo que a OMS teve de declarar estado de pandemia. O Brasil, infelizmente, é um dos muitos países atingidos pelo vírus, onde há mais de 40 mil casos confirmados e mais de 2500 mortes (1).

Tal cenário fez com que autoridades ao redor do mundo mudassem suas atitudes, passando a buscar providências para conter a pandemia. O Governo Federal e os Governos Estaduais do Brasil, inclusive, tiveram de criar medidas para combater a propagação do vírus no país, objetivando conter o número de infectados e de mortos que cresce vigorosamente.

O Governo do Estado de Pernambuco, por exemplo, determinou a suspensão das atividades de escolas e universidades públicas e particulares, o fechamento de shoppings centers, salões de beleza, clubes sociais, bares, restaurantes, lanchonetes e comércio de praia, entre outras medidas que incentivam o isolamento social, método adotado pela maioria dos países infectados para refrear a disseminação do coronavírus.

É evidente que medidas como estas, somadas a todo caos e pânico social desestabilizam completamente o cenário econômico, ante a paralisação de diversos ramos de atividade. Para a maioria das empresas, por exemplo, há a redução da produção de bens e da comercialização de bens e da prestação de serviços e, consequentemente, de receita. Muitas academias de ginástica, por exemplo, estão fechadas, de modo que seus clientes não podem usufruir de sua estrutura ainda que tenham pago suas mensalidades. Lojas em Shoppings Centers não podem ser abertas, mas, em muitos casos, continuam sendo cobrados os aluguéis. Os exemplos são muitos.

Assim, existem um sem número de contratos que foram celebrados em uma realidade econômica muito diferente da originada pela pandemia do COVID-19, mas que estão sendo executados nesse novo cenário. Diante desse cenário, é comum e compreensível que uma ou ambas as partes do contrato não consigam adimplir sua obrigação contratual. Nesses casos, como reduzir ou até mesmo vir a afastar essas obrigações contratuais em decorrência desse quadro problemático?

Inicialmente, é preciso ressaltar que o pacta sunt servanda, base da teoria contratual que afirma que o contrato faz lei entre as partes, não pode ser considerado dogma absoluto, ainda mais diante da conjuntura socioeconômica atual. A cláusula rec sic stantibus defende que o contrato faz lei entre as partes enquanto as coisas e os fatos permanecerem na forma estabelecida na época de celebração do contrato, pois a obrigatoriedade do cumprimento do contrato pressupõe inalterabilidade da situação de fato. A partir de tal informação, tem-se que o contrato não é totalmente rígido e existem situações que ensejam sua maleabilidade.

Além da rec sic stantibus, a legislação pátria possui outros mecanismos que podem ser utilizados nesses casos para analisar individualmente a melhor forma de resolver as adversidades contratuais geradas pela pandemia do novo coronavírus. Tais análises devem se dar de forma casuística, levando em consideração as circunstâncias que envolvem cada caso concreto, além de tomarem como base o princípio da boa-fé e da equidade.


É interessante, ainda, que as partes sejam claras ao rediscutir o contrato, informando sobre suas condições (ou falta delas) para cumprir com sua obrigação contratual ou até traçando possíveis novos planos de pagamento na falta de possibilidade de adimplemento.

A exemplo, cita-se o art. 421-A, inserido no Codigo Civil pela a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19[2]), o qual afirma que revisões contratuais só se darão de maneira excepcional. Ora, as medidas públicas criadas para combater a propagação do coronavírus são claras demonstrações da situação de excepcionalidade socioeconômica que permitiria a aplicação desta hipótese de revisão ou resolução contratual.

Outra ferramenta legal que pode vir a ser utilizada no reexame contratual é a Teoria da Imprevisão. O art. 317 do Código Civil permite que uma parte requeira a revisão contratual quando, por motivos imprevisíveis, o valor de sua prestação devida se tornar extremamente oneroso no momento de sua execução.

A Teoria da Imprevisão, desse modo, permite a revisão contratual quando houver os seguintes elementos: o contrato deve ser comutativo de execução diferida ou continuada; deve haver alteração das circunstâncias fáticas vigentes à época da contratação, e tais alterações devem ser inesperadas e imprevisíveis e tal mudança do cenário deve promover desequilíbrio entre as prestações das partes.

Bastante semelhante à Teoria da Imprevisão, o Código Civil também traz a Teoria da Onerosidade Excessiva. Temos, nos termos do art. 478 do CC, que:
“[n]os contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.

Compreende-se, portanto, que a Teoria da Onerosidade Excessiva pode ser aplicada nos casos em que estiverem presentes os mesmos pressupostos necessários à aplicação da Teoria da Imprevisão somados à demonstração de uma situação em que uma prestação se torne tão onerosamente excessiva a uma das partes que a contraparte passe a obter uma vantagem extrema.

Dessa forma, diferentemente da Teoria da Imprevisão, a Teoria da Onerosidade Excessiva admite que a parte pugne pela resolução contratual (dissolução da obrigação contratual sem seu cumprimento) diante da mudança da realidade fática causada pela pandemia do COVID-19. Contudo, o próprio Código Civil defende que a resolução não deve ser a primeira escolha das partes no processo de reexame contratual. O art. 479 afirma que
“a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.”

Preza-se, por conseguinte, que as partes se baseiem na boa-fé contratual buscando revisar e não resolver o contrato, sempre que possível.

É imprescindível ressaltar que, tanto para a aplicação quanto para a utilização da Teoria da Onerosidade Excessiva, é indispensável que a discussão acerca da revisão ou resolução contratual se opere sobre prestações futuras e ainda não vencidas ao tempo da superveniência do acontecimento que ocasionou o desequilíbrio contratual. Nenhum mecanismo legislativo pode ser utilizado nesses casos para revisar prestações já executadas ou em mora quando do início da situação excepcional.

As relações consumeristas, amparadas pelo Código de Defesa do Consumidor, também vêm sendo extremamente atingidas pelo novo panorama estabelecido pelo coronavírus. Contudo, o próprio CDC também oferece mecanismos que permitem a revisão, ou até a resolução, dos contratos de consumo mediante situação superveniente à celebração contratual que cause onerosidade excessiva ao consumidor. Na realidade fática atual, a mudança socioeconômica causada pela pandemia do COVID-19 caracteriza, em vários casos, situação subsequente que afeta a equidade contratual.

Essa ferramenta pode ser denominada como Teoria do Rompimento da Base Objetiva no Negócio Jurídico, é positivada pelo art. 6º, V, da Lei nº 8.078/1990 (CDC) e não exige que o fato superveniente seja imprevisível, nem tem como requisito que seja comprovada a extrema vantagem para o fornecedor em detrimento do prejuízo do consumidor, pontos em que o CDC destoa das Teorias da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva dispostas do Código Civil Brasileiro.

Além de mecanismos legislativos como os supracitados, o próprio Governo Federal instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, por meio da Medida Provisória 936/2020, que terá aplicação enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido devido ao impacto do coronavírus no país. Tal programa altera regras trabalhistas objetivando “preservar o emprego e a renda de diversos trabalhadores, além de garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais e reduzir o impacto social decorrente das consequências do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública” [3].

Segundo o programa, micro e pequenas empresas cujo faturamento seja de até 4 milhões e 800 mil reais por ano podem suspender os contratos de trabalho temporariamente por até dois meses sem ter de arcar com o pagamento de qualquer parcela, pois o governo ficará responsável pelo pagamento integral do benefício que será oferecido aos trabalhadores.

Empresas cujo faturamento seja superior a esse somente poderão suspender o pagamento dos seus funcionários mediante ajuda compensatória, a qual não tem caráter salarial, no valor equivalente a 30% do salário do empregado durante o período de suspensão.

Pode-se perceber, a partir dos exemplos citados ao longo do presente artigo, que existem diversos meios para reorganizar as relações contratuais diante do novo panorama socioeconômico originado pelo COVID-19. É preciso que as partes contratantes ajam sempre com clareza, expondo sua situação em relação a possibilidade de arguir ou não com sua parcela contratual. Todo processo de revisão ou resolução contratual deve ser analisado individualmente, com enfoque nas particularidades de cada caso.

É interessante, também, que a parte que se encontrar impossibilitada de cumprir com sua obrigação busque traçar novos planos de pagamento que podem ser analisados em conjunto buscando a revisão contratual, sempre baseando-se na equidade e na boa-fé e evitando, quando possível, a resolução contratual, pois essa gera maior impacto na relação entre as partes.

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Notas:

1 De acordo com os dados coletados em 20/04/2020 pela Worldometers, entidade de curadoria de dados internacionalmente conhecida- https://www.worldometers.info/coronavirus/country/brazil/.
2 Art. 421-A, CC. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (…)III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
3 Explicação da Ementa disponível no site do Congresso Nacional- https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/141375.

  • Thaís Praxar Farias Lopes é estudante de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, e estagiária do escritório Leite e Emerenciano Advogados. thaispraxar@leadvogados.adv.br